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quarta-feira, 13 de março de 2013

SILENCIOSO COMO O PARAÍSO

Festa dos cabelos trançados

VICENTE FRANZ CECIM



                                         IMAGEM Bruno Cecim






    Dos adormecidos, todos, então começaria a vir o mesmo som de águas, redemoinhos, que viera da criança.
    Era a carne talando neles, agora só a carne estando todo o resto adormecido?
    Se pudéssemos ouvir o que a carne tinha a nos dizer naquela casa
    Ouviríamos:
    Os sons de águas se transformavam em vozes nos adormecidos.




    Fomos aqueles que primeiro uivou para ti,
    e na primeira noite, o que primeiro riu nos tempos
    Fomos os nossos arrependidos ossos curvos
    pois tu trituras amorosamente o que conténs,
e incontida

     Silenciosos sob o silêncio da erva: sensíveis
     à dor e à tua erva

     Silenciosos até a altura dos ramos voltados
     para a nascente, grande é a Face que te espia da
 outra margem

     Pois se das coisas temos um sol tombado, e a descida
     sombra
     e o canto aviltado da voz rouca,
     e ainda os olhos da primeira vez
     da primeira, ó inesquecível
     e sem podermos ver

     deitados sob o silêncio da erva, e sensíveis ao que fomos
     Ao uivo aos ossos à face à erva



     Novo silêncio. E o canto:



     Pelos tempos e as geleiras,
     animais fizeram a curva luminosa do teu dorso

     Verão sobrenatural: não damos um passo
     sem a tua companhia

     Pelo espesso: dele a espessura se desprende
     na forma dos cheiros selvagens que tanto
     nos empalidecem à noite:
     cada um de nós é um clarão visto à distância

     Tu és o escândalo do deus que se desfez
     do lado mudo dos seus gonzos. E se abres
     a porta escura deste ombro,
     fatigados pelos campos
     semeamos nossos ossos mais humanos
     nos lugares onde tivemos lábios e ressecam da oração



     O canto: isso nos invade, quer nos habitar pelos ouvidos para sempre

     Pois tua é a sombra e a Sombra

     e na areia
     a reunida areia, a carne

     E a concebida asa,

     e na areia ainda a reunida asa de areia


                                                             Iluminuras, São Paulo, 1995



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

DIÁRIO D oO LIVRO INVISÍVEL: X Asa de murmúrios

DIÁRIO D oO LIVRO INVISÍVEL: X Asa de murmúrios:   VIAGEM A ANDARA oO LIVRO INVISÍVEL  II foi no Tempo foi no Tempo, um Lugar, onde estive centro, para os Repousos humanos Madeir...

OS DIAS CONSAGRADOS Vicente Franz Cecim/Imagens: Goeldi




na via Lenta





este é o caminho das

Grades,
e ouves no fundo da Terra portões de ferro voltando ao pÓ,

como tu



Mas Tu não cumprirás toda a Profecia



Afinal,
não chegaste pela rua da tua Infância? N
ão tropeçaste na porta da Sede e a Água te ergueu?

Não testemunhas o regresso das árvores em Sonhos




e
não passa Dentro de ti
a Outra via?


leve



Que
leva
à Leveza invisível




a Residência entre Clarões está nas cinzas





Agarrado ao teu Tronco,

como não lamentarias a queda dos Frutos?


Perdido de Ti,

como colherias a Semente
no ar

e a semearias nas noites da Fadiga?



Para isso: ouvir
Aquilo que chama na Sombra


Para aquilo, ver
Isso: o Anel de Luz

na noite que mais pede sacrifícios à Aurora dos Destinos

ao passo

mais fiel ao caminho para a casa tombada,   Lá: onde a Curva
no horizonte
oferta a Esfera     ao fechar dos Círculos


à água de murmúrios dos Teus Olhos


À Asa murmurante que não pousa




Celebração das noites fatigadas



há Desesperos circulares, Tu sabes desesperos

como o do animal no Escuro    escuro

Girando

contido no Centro que seu  giro gera



E a cada giro, Pura
emissão de intensidade busca as margens para Além das margens

E a cada giro, o Não
Escrita de grades: a palavra Dor não é a palavra Sim




Mais um giro, e eis: a Queda

Luz fenecendo

Oo

Centro que des
morona, des
falece em centro




E se esmorece

o Desespero, e se
se apaga: Se sob a pele Negra olhos se ocultam,


na harpa de grades a pausa é breve e não há Música


pois foi escrito no Bosque Sem Ternuras, em nossa Face: Que os olhos que uma vez se fechem outra vez se abram,


e eles se abrem,

Cílio sem paz se


acende o Desespero



e Testemunha: as Grades permanecem Lá




E

se adormece para os Sonos dos Alívios? Sem

remédio Sem
remédio,

porque sonha Grades





ah, tudo oculta em sonhos a Catedral de cinzas




as Margens

o Círculo



e a chave perdida





Animal escuro, 

te tornaste o próprio Centro escuro




Tece teus cílios de Hera sagrada

Cintila


 nas noites Sonha


com a Alvura




Não sabes que Outro centroO

te Ilumina,


mais Escuro?





há Desesperos circulares, Tu sabes






Caminho dos corpos lentos




E o Céu? Se
pergunta a Terra,

enquanto desces ao encontro do Teu Centro


eis: a espreita do Suspeito de Si Mesmo

Eis a Penumbra da Água em silêncio
Na Fonte,
não são Longos os peixes que te incineram

Ainda uma vez um Sim de pedra
se ocultou

na Noite,


e enquanto tombas vais lembrando que Não És


  
  
a parte dos Dons





mas





Se

nutrires em Ti
 a Metamorfose da Esfera,




ouve e Celebra o teu rumor de Hera

  
  
H




e



} quando o Silêncio horizontal se disser, te despindo, o Fulgor que És

e tudo em círculos vagando sobre a Esfera vier se Delatar a ti como
Máscara para esmagamentos > a horda escura e a História
e o ir e o ir e o ir dos frutos retornantes às sementes

mas não
o Vir
da Semente ao Fruto que nós chamamos Vida



e

quando na Clareira, Nu
testemunhares o desabrochar da Hera


#




Então

} haverá um dia seguinte

E nesse Dia
Manhã do Caminho sem caminhos,
despertando

abrirás a porta da tua casa

e verás


a Constelação Sem Centro



Porque o Centro tombou sem rumor toda a Noite para a Terra



Estás outra vez na rua onde passou por ti a Vertigem, a Tua Infância




E agora } o Centro

És Tu

O escritor e cineasta paraense Vicente Franz Cecim é uma singularidade na literatura contemporânea, um dos poucos no mundo - não só no Brasil - que ainda permanecem fiéis a uma ideia de literatura como gesto elevado, animado por um insaciável desejo de ir além. Cecim, na linha dos grandes mestres do fazer que transcende especificações estéticas simplistas - Platão, Goya, Bach, Novalis, Hegel, Mallarmé, Rosa -, dedica-se há décadas a escrever uma única obra, Viagem a Andara: oO livro invisível, de que fazem parte movimentos poético-narrativos belíssimos, como Ó Serdespanto, publicado pela Íman em Portugal em 2001 e pela Bertrand Brasil em 2006, e oÓ: Desnutrir a pedra, publicado pela Tessituras em 2008. A viagem desse extraordinário criador a Andara começou, precisamente, em 1979, quando publicou, na sua Belém, onde vive, A asa e a serpente. Os fragmentos aqui publicados, cedidos com exclusividade pelo autor  - que integrará o Conselho Editorial de Orobó impressa e digital - fazem parte de Vozes de Andara, criação in progress do infinito Livro (In) visível. As gravuras são de Oswaldo Goeldi (1895/1961), que, nascido no Rio de Janeiro, viveu até os seis anos de idade na cidade de Cecim antes de seguir para a Suíça, terra do seu pai, retornando ao Brasil em 1919. REVISTA OROBÓ/http://www.revistaorobo.blogspot.com.br/2013_02_05_archive.html

domingo, 8 de julho de 2012

TeAndara: Teatro Invisível

Vicente Franz Cecim






 

          BREVE INICIAÇÃO A TEANDARA



         O Teatro Invisível de Andara é, diferentemente do teatro da Presença tradicional, o teatro da Ausência. Dispensa, progressivamente, até a máxima ausência: atores, cenários, elementos de cena, ações encenadas num palco, e até o próprio palco, podendo ser apresentado em qualquer espaço físico. Alguém sentado em uma cadeira, ou no chão, ou em pé, diante de uma parede nua, pode assistir a uma TeAndara peça. A opção pelos graus desse progressivo Despojamento dependerá unicamente do encenador das peças TeAndara. A opção preferida pelo autor das peças TeAndara é a mais Despojada de tudo: quase ironicamente, as luzes da Platéia se apagam, se abre a cortina para um Palco Vazio aleatoriamente iluminado, por luz ou luzes intensas ou brancas ou em cores ou de uma só cor conforme a atmosfera da TeAndara peça que será apresentada: enquanto a Luz do Palco vai sendo lentamente apagada, os espectadores são convidados por Voz anônima cuja origem é invisível a irem fechando os olhos para começarem a assistir à peça TeAndara, a ser apresentada pelo Teatro Invisível de Andara. Fechar os olhos – por que? Porque as TeAndara peças se encenam no Interior de cada espectador. É o Teatro do Imaginário Humano,
onde cada espectador, diferentemente da postura passiva ou da situação de mera catarse que lhe determina o teatro da Presença tradicional, é chamado a uma participação, a ser ativo, a ser o Criador, em Si, da TeAndara peça – fundindo os atos de assistir e de representar em um Ato Único: ele se torna, ao mesmo tempo, espectador + ator + personagens + leitor & dramaturgo + cenógrafo+ encenador das TeAndara peças.  As dificuldades emergentes e os Despojamentos possíveis com que irá se confrontar o Encenador das TeAndara peças variarão de graus e intensidades, a cada uma delas. Vejamos quais podem ser essas Variantes de encenação:

I: Algumas se consentirão ser encenadas utilizando o mais radicalmente Mínimo recurso: apenas uma Voz narrando para a encenação individual no Teatro do Imaginário Humano – se encenando no espectador de olhos fechados.
 
II: Outras permitirão que alguns elementos de cena sejam mostrados na abertura da cortina para o palco iluminado, antes que as luzes comecem a
se apagar. Da mesma maneira, nesses casos, é possível mostrar, também, um ou mais personagens, antes das luzes se apagarem e os dissolverem no escuro. Mas serão aparições muito Fugazes - tanto os elementos de cena quanto os personagens, muito fugazes: como que clareados por relâmpagos. Serão apenas breves provocações sugestivas ao Imaginário do espectador, instilações mnemônicas para sua encenação pessoal da TeAndara peça.

III: Ou, quem sabe, se poderia esboçar alguma ação essencial, preliminar, cerne do assunto da peça, muito curtamente - com a mesma função iniciatória relampejada, à TeAndara peça.

IV: Uma alternativa híbrida seria: dando à Voz Invisível que narra a TeAndara peça o papel principal, condutor, aqui e ali, esparsamente, encenar e mostrar em cena alguns dos personagens e ações que irão sendo sobretudo descritos pela Voz. Surgindo brevemente ao longo da peça e logo se dissolvendo e sumindo da cena. Como Visões num sonho. Ou fragmentos de sonhos. Importante: - Isso deveria ser feito de forma absolutamente Lúdica – não da antiga forma dramática. Certamente seria instigante e poderia se tornar muito belo, esse surgir e sumir das coisas em cena. Seria uma representação do Efêmero. Mas, certamente, também estaria sendo uma muito generosa concessão do Teatro de Ausência TeAndara ao antigo teatro de presença. E qual seria a posição do espectador? Nesses casos híbridos o espectador estará sendo solicitado a ter apenas uma semiparticipação ativa na encenação da TeAndara peça, completando, pela intervenção do seu Imaginário, os fragmentos de encenação lançados do palco a ele - a partir das sugestões que lhe irá dando a Voz narradora.



EIS A SEGUIR DUAS TEANDARA PEÇAS:







I

ATO ÚNICO: 7 HOMENS TRISTES
VICENTE FRANZ CECIM


ação & dramatis personae/
palavras & sons: como se seguem


Cena I

         sete homens vestidos de negro inteiramente negro
como a noite mais negra de todo o universo
         atravessam uma paisagem de deserto com areias a perder de vista sob
uma luz de sol a pino que não se vê
         a paisagem toda cercada pelas paredes muito altas do grande aposento de uma casa

         o último homem Negro da fila implora a um grande gato que anda a sua frente indiferente aos seus apelos e inteiramente branco tão branco quanto a mais excessiva luz que possa se ver no universo
         que lhe permita falar ao menos uma vez com deus

         um raio cai do céu e o clarão cega todos por um instante e eles caem no chão
         como mortos ou desfalecidos não se sabe

         o gato foge com um longo grito alucinado

         AS TREVAS DESCEM SOBRE A PAISAGEM


Cena II

         AS LUZES VÃO SE ACENDENDO NOVAMENTE E SE VÊ

         sentado sobre uma nuvem imensa artificialmente feita de flocos de algodão uma manifestação da Imagem Ocidental de Deus comenta esses acontecimentos que acabou de ver com um Dragão Vermelho de peça de teatro Kabuki que fica se bamboleando ao seu lado sobre um tablado em forma de livro
         um livro também imenso azul com letras douradas
         em sua lombada se pode ler TRATADO DAS COMPREENSÕES VELADAS
        
         O DEUS: jurei jamais dizer a palavra Nada depois de ter criado a vida
         mas terei que dizer nada agora pela segunda vez isto é terceira nada se compara ao homem em espanto e sabor de doce-azedo em todo o universo
         O DRAGÃO: verdade seja dita que São Jorge também esperava deles muito mais do que lhe dessem a Lua gelada para morar eternamente
         e quanto a mim não lhes perdoarei nunca ter que suportar
         pela eternidade
         a fria lança cravada em meus flancos enquanto eles se divertem
         em seus jogos e danças amorosos se espetando outras pontas agudas feitas da sua Carne
         furiosamente
         e multiplicando os seus filhos para que por mais eternidades ainda haja gente lá na Terra para permanecer contemplando a Lua e a cena mística cruel que conceberam de São Jorge Espetando o Dragão
         PAUSA
         tudo indica que isso durará até o final dos tempos
         O DEUS: não não não permitirei que essa frase seja pronunciada
         em minha presença final dos tempos
         o homem já que é obra minha mesmo que a mais Imperfeita e Inacabada das obras que criei deverá perdurar para sempre e sempre et sempre ainda que a tudo o mais inflija a dor e a destruição
         a todas as coisas vivas ou mortas ou doces ou amargas ou líquidas ou feias ou belas ou infantilizadas ou amedrontadas ou arenosas ou matutinas ou crispadas ou ventrudas ou ausentes ou azuladas ou febris ou friorentas de quantas eu criei e depois continuaram se multiplicando já sem mim sem precisar de mim para mais nada quarta vez
         não nÃo NÃO

         a esse último grito de deus que soa em toda a abóbada celeste com um estrondo insuportável

         CAEM AS TREVAS SOBRE TUDO NOVAMENTE


Cena III

         voltando pé ante pé à PAISAGEM DESÉRTICA ENTRE AS PAREDES ALTAS DA CASA que vai clareando lentamente lentamente
         os sete homens de negro estão voltando SOB A LUZ DE SOL A PINO que não se vê

         entra o primeiro e observa o dorso da sua mão esquerda detalhadamente com uma lupa
         entra o segundo e segura o pé direito e o leva ao nariz inalando o seu odor profundamente
         intrigado
         entra o terceiro e no meio da cena pára e se põe a arrancar seus cabelos se desprendem aos chumaços e ele vai plantando os chumaços no chão
         curvado
         como o agricultor do Ângelus de Millet
         a luz nesse momento se torna crepuscular
         ouve-se enquanto a luz decresce o Ângelus das 6 Horas da Tarde crescendo de intensidade
         mas algo quebra o disco que range distorce os sons e finalmente pára
         a luz volta ao normal que sempre é luz de sol a pino violenta cegante

         entra o quarto que enfia nos lábios grandes Pregos Negros
         entra o quinto que traz um rouxinol amarrado com correntes para que não fuja a fera perigosa
         entra o sexto que traz também acorrentados o seu Pai e a sua Mãe os dois já muito velhos
         arrastados atrás de si

         todos agora estão na paisagem desértica entre as paredes altas sob a luz intensa cada um ocupado conforme entrou
        
         passa-se um tempo longo com eles ocupados nessas atividades

        
         então entra o sétimo homem com o grande gato         
implorando a ele que lhe permita falar com deus ao menos uma vez
         exatamente como no início de tudo
         o gato espia o céu e como um cão uivando para a lua lança um longo Miauuuuuuuu em direção à abóbada celeste
        
         todos param para observar o Gato miando para a abóbada vazia
         longa & grande imobilidade em cena
         longa & grande imobilidade em cena

         aí de um buraco imenso que se abre subitamente no chão emerge o deus
         domina toda a cena com sua vasta estatura
         avança para o gato que mia para o céu e o despedaça jogando depois os destroços do corpo retorcido no areal e torna a sumir buraco adentro no chão uma descida
furiosamente crispada de faíscas e emanações de gases rubros que lembra a descida que o Inconsciente imagina ser assim às profundas do Inferno
        
         todos voltam às suas atividades anteriores
         o primeiro homem de negro observa o dorso da sua mão esquerda detalhadamente
         com uma lupa
         o segundo segura o pé direito e o leva ao nariz inalando o seu odor profundamente
         intrigado
         o terceiro parado no meio da cena arranca os seus cabelos se desprendem aos chumaços e ele planta os chumaços no chão curvado
         como o agricultor do Ângelus de Millet
         a luz novamente se torna crepuscular decrescendo
         enquanto novamente se ouve o Ângelus do Crepúsculo crescendo de intensidade
         mas algo quebra o disco que range distorce os sons e finalmente pára
         a luz volta ao normal e sempre é luz de sol a pino violenta cegante sol que não se vê no alto da paisagem só sua luz
         o quarto homem de negro enfia nos lábios grandes Pregos Negros
         o quinto que trouxe o rouxinol amarrado com correntes parte as correntes e solta a ave que foge velozmente se debatendo contra as paredes até encontrar uma saída sangrando muito
         o sexto ao contrário vai buscar no canto da casa amontoada junto a uma parede mais corrente e reforça a prisão dos já acorrentados seus Pai & Mãe

         o sétimo homem sozinho num canto da parede
         olha para a abóbada celeste
         olha longamente
         enquanto os outros seguem outra vez ocupados em suas atividades e ignorando totalmente uns aos outros e a ele o sétimo homem

         o sétimo homem se põe de quatro Animalmente e esticando o pescoço até um ponto de tensão insuportável para o céu emite um longo infinitamente triste e desesperado uivo

         as luzes e os sons da cena vão decaindo lentamente até as Trevas totais
         e o Total Silêncio



TEANDARA: TEATRO INVISÍVEL
VICENTE FRANZ CECIM
CONCEPÇÃO EM 1997

ATO ÚNICO: 7 HOMENS TRISTES
Versão transcriada em 2004












II

APÓS A SEDE DOS DESERTOS

VICENTE FRANZ CECIM


ação & dramatis personae/
palavras & sons: como se seguem


um homem nu envolto num lençol rubro de sangue flutua no ar, horizontal ao horizonte, peito para baixo às vezes vira de peito para cima, para o céu, flutuando a um corpo humano de distância da areia por baixo, a infinitos corpos de distância do céu por cima quando volta para ele sua face no céu, vê nuvens de sal, que às vezes passam e vê outras coisas: aves, anjos, grandes manchas negras de culpa e às vezes não vê nada, se nada está passando, tem apenas o grande céu vazio por cima nas areias, no também grande deserto por baixo dele, também vê coisas coisas que ali estão passando: insetos, só os grãos de areia levados pelo vento, pedaços de papéis onde lê, aos fragmentos, em voz alta, coisas escritas: fragmentos dos Upanishads talvez, cenas de Don Quixote de la Mancha talvez, de Homero: Ulisses e as sereias talvez às vezes o homem flutuante julga ouvir também o canto das sereias às vezes espera ver os gigantes moínhos surgirem do horizonte vindo em sua direção pede a Dom Quixote emprestada a sua lança: Se eu tivesse lanças
às vezes, fortes rajadas de vento sopram em seu rosto, empurrando todo o seu corpo para trás: é preciso resistir, sufocando de tanto ar, nadar para frente batendo os braços com gestos bem desesperados, resistir para não ser levado pelos Ares e para onde? e para onde, nesse céu, para que parte desse céu que geralmente está vazio? e silencioso? tão silencioso que é inútil esperar por qualquer resposta a essa pergunta, mesmo quando o homem flutuante faz a pergunta ao vento: Lavado pelas águas desse vento, para onde? serei então levado? e para onde?
sempre que vem uma das rajadas de ar, é preciso calar: pois ele fica sem ar, por excesso de ar, e tem que engolir as palavras que pretende dizer e as noites vêm sobre ele, as estrelas vão surgindo no céu, a lua, amarela, sua luz amarela uma grande estrela às vezes surge sobre o deserto como a Estrela da Anunciação do Nascimento da Criança na Manjedoura e pousa sobre o homem e o envolve todo em sua luz, uma intensa luz azul sobre a areia branca azulada a perder de vista e se acende ao fundo como a projeção de um filme o Sagrado Coração Sangrando, aberto, o seu Martírio na hora do crepúsculo: ouve a voz do Ângelus e nascem e renascem os dias, muitas alvoradas também muitos crepúsculos, sempre passando pelo homem flutuante e sempre e sempre, rajadas fortes de vento: e sempre que uma rajada de ar vem ele tem que engolir as palavras que pretende dizer, enquanto ouve uma voz ecoante que se faz ouvir vinda de todas as partes da Vida – da areia por baixo dele, do céu por cima dele, inatingível - uma Voz que diz: - No Início era o Verbo sufocante
ante 
                     ante
                
             ante voz se distanciando depois > Silêncio 





então, voltam palavras & sons:

o Homem: olhando esses grãos de areia, náufrago no ar, às vezes sendo levado pelo vento, mas não agora, agora não há vento soprando, nem uma brisazinha vem
  náufrago no ar, como se fosse um lençol arrancado do varal numa tarde de sol, ou arrancado de uma cama, despertando de seus alvos sonhos muito brancos, levado pelos ares, deixando nus os sonhos de toda uma noite gelada
  náufrago
  no ar
  vendo passar um inseto, que lá de baixo Me vê aqui em cima, boiando na calmaria, agora que não há mas vento soprando, nem uma brisazinha

  o náufrago, no ar, não negro: Vermelho como sangue, para matar a sede deste deserto em que flutua

  etc
         etc    
                   etc






TEANDARA: TEATRO INVISÍVEL
VICENTE FRANZ CECIM
CONCEPÇÃO EM 1997

APÓS A SEDE DOS DESERTOS
2004