VIAGEM A ANDARA oO LIVRO INVISÍVEL
De Ó Serdespanto
Em algum lugar do estranho mundo
mãos se tocam em silêncio branco Ah o encanto da carne
quando esquecida é a existência do deus
que causa a dor
Uma ave vai pousando em seu ninho,
traz nos olhos os espantos do dia que se acaba, se acaba
Mas a tarde nos serena, com a promessa
de que logo vai anoitecer
para novamente nos tornarmos sombras, nos tornarmos sombras,
nos tornarmos sombras
Devolvidos aos ninhos escuros, escuros, escuros
Ah como nos assusta caminhar sob um sol
A este lado da esfera
ainda não veio o tempo do repouso A terra geme,
a fatigada, fatigada
Os homens nos caminhos do crepúsculo da raça
perderam seus olhos
nos cílios pesados de bronzes antigos As estátuas com nódoas de vergonhas,
a vergonha, a vergonha
Nunca mais tu ouviste
o sino que chamava os gestos brandos do fundo
do templo
Ah a sina
do efêmero encarnada em tudo que se move
à nossa volta
Mas tu ouves num inseto de outono o Inseto
do outono
As folhas que se fecham sem desprezo
Num ramo que se parte e cai sozinho,
nenhuma força negativa pousou neste inverno
No estranho mundo, alguém está deixando
o pequeno porto
em seu leito de morte,
e isso nos faz mais lentos do que o cedro transformado em leito macio
porque de madrugada alguém, que será outro,
acaba de nascer na casa verde ao lado
Ah o ir e vir dos viajantes pelas estrelas, as estrelas,
as estrelas
Como tem poder um gesto
branco branco
quando vêm do fundo na noite os silêncios
em que nasce a flor a rubra da ternura
À noite a noite a noite
banhará as frontes que sonham serenas o sereno
Um cão se encosta ao dono
e ao seu odor humano
Ah como é lento este aprender a semelhança
entre a pata do animal e o gesto humano
Misteriosa, uma estrela agora desce sobre o bosque
dos destinos
A filha dos pântanos se agasalha em folhagens negras
O sol tem um ritmo de sangue,
anunciando um novo despertar do mundo
Ah como renasce este outro lado da terra, a dourada, para a luz
Um emblema de paixão te é dado a cada dia
E o vinho está servido nos sentidos
para ser bebido por aqueles que tiveram as suas mãos feridas, feridas,
as feridas
Claro e escuro é o mundo
Claro e escuro é o mundo
Ah o espanto daquele que desperta após um breve sono O anjo, em ossos
e sangue
Se adormeceu no fim da tarde
e abre os olhos na penumbra
que não sabe
se anuncia um anoitecer de pedra
ou ainda a areia as auroras da vida
Por algum tempo, permanece mudo
E não pode se dizer o que virá depois, se luz, se treva
Ah a garganta quando quer cantar uma canção de pura luz
Ah o irmão perdido Ah a voz que prefere calar
diante do crime do irmão
Em algum lugar do estranho mundo
mãos se tocam em silêncio branco,
olhos se olham em virtude azulada,
peles se roçam na intimidade dos amigos
Ah os ninhos que se constrói com o afagado
e o murmurado
Quem são aqueles dois que agora cruzam a ponte
entre suspiros e brumas,
ignorando o cão de ferro que late em seus calcanhares
Levando um peixe de ouro, o pescador de sonhos
Ei-lo que vai voltando para o recanto do estranho mundo onde ergueu sua casa
de palha e centelha convivendo em paz
Ah a ave distendendo as asas
no amanhecer do ninho, o ninho
para reiniciar a aventura da leveza
Como é leve esta pedra no caminho
Como é longo o culto à árvore
em que se enterram as raízes da família
e o choro da criança pela primeira vez
Não tires a tua mão da claridade
da minha mão cansada que repousa em ti,
para ocultar na sombra
Ah
não esperes o receio
para te abrigar em meu peito, diz a voz branda
e longe uiva a fera do adeus
Quem são aqueles que atravessam a ponte
sem temer o cão de ferro, a vida
E por que ainda está ausente o peixe
As planícies de escamas, ao longe, ao longe ao longe Mais uma estrela
caiu dos teus olhos
Ah os que caminham juntos sobre as águas
e a paciência do homem com a madeira
para fazer a casa e a cama
onde o recém-nascido acaba de chorar pela primeira vez
enquanto a vida também constrói para ele
uma ponte
e um latir de ferro em seu calcanhar
apontado para o céu,
enquanto o sangue verde lhe desce à cabeça
enquanto o olhar da mãe de lábios lívidos
Ah o nome que daremos a tudo isso
que nos envolve,
e que chamamos vida,
quando voltarem os tempos perdidos
ao regressarmos aos ninhos de verão,
dois a dois
atravessando a ponte,
pisando as marcas dos passos dados pelos anos puros
Aquela que tece a lã generosa
porque crê no balido do amigo,
ah
como a chamaremos depois que cessar nosso primeiro choro
e a Casa ao lado for a nossa casa?
Ah o encanto da carne
quando é esquecida a existência do deus
que causa a dor
Ah o encanto da dor
quando esquecida é a existência do deus
que causa a carne
Mãos se tocam em silêncio branco
em algum lugar do branco e estranho mundo